Quem diria que há oitenta anos alguém em Portugal se poderia preocupar em trazer ao público novidades sobre o que era ao tempo uma discussão vibrante, mas longe das preocupações gerais (que, convenhamos, naquela época se dirigiam mais aos apetites de conquista de um senhor nascido na Áustria, com um bigodinho peculiar…)?
Agostinho da Silva, nascido em 1906 e falecido em 1994, é uma figura sobejamente conhecida nos meios intelectuais lusófonos. Homem de grande cultura, a sua curiosidade não conhecia limites, e a sua vontade de espalhar o conhecimento também não. No início dos anos 40 do século passado, antes de partir para o Brasil em busca da liberdade que escasseava em Portugal, empreendeu a publicação de uma colecção de fascículos, os “Cadernos de Informação Cultural”, com o fim de ‘fazer a vulgarização dos conhecimentos que se consideram indispensáveis para que se possa adquirir uma cultura ampla e sólida’, e ‘sem qualquer espécie de intuitos comerciais’. Esta colecção, em edição de autor, podia ser assinada, saía de 15 em 15 dias, em séries de seis – custava uma série 5$50, e os exemplares avulsos 1$00. Chegou até à 11ª série, publicada em 1947. Como era característico do autor, abordou um largo espectro de assuntos, da História à Geografia, passando pela Filosofia, pela Arte e por muitos outros temas. A lista completa dos fascículos publicados pode ser vista aqui.
Mas é o primeiro fascículo da segunda série que hoje nos interessa: O planeta Marte. Ao longo de 20 páginas, Agostinho da Silva resumiu em linguagem clara o que se sabia e o que se discutia ao tempo sobre o planeta vermelho. Não se tratando de um trabalho de investigação e sim de divulgação, começa por uma breve história da relação entre a Humanidade e aquela pequena estrela vermelha, nos tempos em que a observação era a olho nu, e a sua verdadeira natureza ainda era desconhecida. Explica a profunda alteração que Copérnico e depois Kepler provocaram na nossa visão do Universo, e a forma como a órbita de Marte afecta a forma como vemos o planeta. Realça depois a observação telescópica e as revelações que ela permitiu, a descoberta dos satélites marcianos, e passa depois à descrição do aspecto da superfície do planeta: as zonas de diferente brilho e coloração, os pólos gelados e, sobretudo, os “canais”. Schiaparelli e Lowell não são esquecidos, mas também são referidas experiências que diversos autores mais cépticos realizaram, para tentar elucidar a difícil questão da sua realidade. O autor inclina-se claramente para a não existência de canais…
E depois, Agostinho da Silva usa um termo muito actual: habitabilidade. Relaciona-a naturalmente com a atmosfera do planeta e a sua composição (admitindo a presença de água e oxigénio…) e com o clima existente. Faz sobretudo notar a grande incerteza que pairava sobre as determinações das condições no planeta. Com tudo isso, conclui que é extremamente improvável que existam em Marte seres semelhantes aos humanos – mas que pode bem existir vegetação.
Nas últimas linhas, o autor revela a sua adesão à ideia de que Marte é um planeta “mais velho” do que a Terra, um espelho do que poderia vir a ser o nosso planeta num futuro longínquo. Apesar de errada, esta teoria não pode deixar de nos causar alguma reflexão, dadas as nossas circunstâncias actuais…
É incluída uma pequena lista de livros que o autor terá por certo lido e onde recolheu a informação que apresenta aos seus leitores portugueses. Entre os autores (franceses, sobretudo) avultam dois nomes: Flammarion (numa tradução portuguesa) e Antoniadi (um dos maiores adversários da hipótese dos canais marcianos).
Claro que este breve resumo não faz justiça ao original, pelo que se convidam os interessados a ir lê-lo. Trata-se de uma das raras obras portuguesas em que se apresenta algo de actual (ao tempo) sobre a exploração (ainda que visual e pouco mais) do Sistema Solar. Sim, o livro está livremente disponível, aqui.
Na colecção existem outros fascículos capazes de despertar algum interesse aos nossos leitores: o 4º da 7ª série, de título O Sol, e o 2º da 10ª série, As Estrelas. Além disso, numa outra colecção, intitulada “À Volta do Mundo – Textos para a Juventude”, Agostinho da Silva publicou em 1943 “Viagem à Lua”, onde fala de três clássicos da literatura – Viagem à Lua, de Cyrano de Bergerac, Da Terra à Lua, de Júlio Verne, e Os Primeiros Homens na Lua, de H. G. Wells –, além de debater a possibilidade de um dia a Humanidade empreender realmente essa viagem.
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