Pesquisadores da Universidade do Arizona reconstruíram fluxos de lava a partir de imagens de naves espaciais e de radar para entender melhor a história surpreendentemente turbulenta de Marte.
Esta imagem, obtida pela sonda Mars Express da ESA, mostra uma vista oblíqua focada num dos vastos fluxos de lava de Elysium Planitia. Crédito: ESA/DLR/Freie Universität Berlin
De acordo com um estudo liderado por investigadores da Universidade do Arizona, EUA, uma vasta planície plana e sem características em Marte surpreendeu os investigadores ao revelar um passado geológico muito mais tumultuoso do que o esperado. Enormes quantidades de lava irromperam de várias fissuras, cobrindo uma área quase tão grande como o estado norte-americano do Alasca e interagindo com a água à superfície e sob a superfície, resultando em grandes inundações que esculpiram canais profundos.
Marte não tem placas tectónicas - "pedaços" de crosta que se deslocam e que reconfiguram constantemente a superfície da Terra - e há muito que se pensa que é um planeta geologicamente "morto", onde poucas coisas acontecem. No entanto, descobertas recentes levam os investigadores a questionar esta noção. Em 2022, uma equipa de cientistas planetários, também da Universidade do Arizona, apresentou evidências da existência de uma gigantesca pluma mantélica por baixo da região chamada Elysium Planitia, que provocou intensa atividade vulcânica e sísmica num passado relativamente recente.
Neste estudo mais novo, uma equipa liderada por Joana Voigt e Christopher Hamilton, do LPL (Lunar and Planetary Laboratory) da Universidade do Arizona, combinou imagens obtidas por naves espaciais e medições de radar, que penetra no solo, para reconstruir em detalhe tridimensional cada fluxo de lava individual em Elysium Planitia. O extenso levantamento revelou e documentou mais de 40 eventos vulcânicos, com um dos maiores fluxos a encher um vale chamado Athabasca Valles com cerca de 4000 quilómetros cúbicos de basalto.
"Elysium Planitia é o terreno vulcânico mais jovem do planeta e o seu estudo ajuda-nos a melhor compreender o passado de Marte, bem como a sua recente história hidrológica e vulcânica", escrevem os autores no seu artigo científico. Embora não tenha sido observada qualquer atividade vulcânica atual em Marte, "Elysium Planitia esteve vulcanicamente muito mais ativa do que se pensava e pode até estar ainda hoje vulcanicamente 'viva'", disse Voigt, a primeira autora do estudo, publicado na revista Journal of Geophysical Research: Planets. Uma abundância de sismos marcianos registados pelo módulo de aterragem InSight da NASA, entre 2018 e 2022, forneceu evidências de que, sob a sua superfície, o Planeta Vermelho não está "morto".
"O nosso estudo fornece o relato mais completo do vulcanismo geologicamente recente num planeta que não a Terra", disse Hamilton, professor associado do LPL. "É a melhor estimativa da atividade vulcânica de Marte durante os últimos 120 milhões de anos, o que corresponde ao período em que os dinossauros vagueavam pela Terra no seu auge até ao presente."
As fraturas da paisagem de Cerberus Fossae, localizada na vasta planície Elysium Planitia em Marte, cortam colinas e crateras, indicando a sua relativa juventude. Um novo estudo, que fornece o mapa tridimensional mais detalhado das características vulcânicas nesta área, traça uma imagem de Marte como um planeta com um passado geológico muito mais tumultuoso do que se pensava anteriormente. Crédito: ESA/DLR/Freie Universität Berlin
Segundo os autores, as descobertas têm implicações para a investigação sobre a possibilidade de Marte ter albergado vida em algum momento da sua história. Elysium Planitia sofreu várias grandes inundações de água e há evidências de que a lava interagiu com água ou gelo, moldando a paisagem de forma dramática. Em Elysium Planitia, Voigt e os seus coautores encontraram amplas evidências de explosões de vapor, interações que são de grande interesse para os astrobiólogos porque podem ter criado ambientes hidrotermais propícios à vida microbiana.
A equipa utilizou imagens do instrumento CTX (Context Camera) a bordo da sonda Mars Reconnaissance Orbiter da NASA, ou MRO, combinadas com imagens de resolução ainda mais elevada da câmara HiRISE do mesmo orbitador, em áreas selecionadas. Para obter informação topográfica, tiraram partido dos registos de dados do instrumento MOLA (Mars Orbiter Laser Altimeter) de outra nave espacial da NASA, a Mars Global Surveyor. Estes dados foram depois combinados com medições de radar do subsolo efetuadas com o instrumento SHARAD (Mars SHAllow RADar sounder) da MRO.
"Com o SHARAD, conseguimos ver até 140 metros abaixo da superfície", disse Voigt, que completou o estudo como parte do seu doutoramento na Universidade do Arizona. Atualmente, é investigadora no JPL (Jet Propulsion Laboratory) em Pasadena, no estado norte-americano da Califórnia.
"A combinação dos conjuntos de dados permitiu-nos reconstruir uma visão tridimensional da área de estudo, incluindo como era a topografia antes da lava irromper por múltiplas fissuras e encher bacias e canais anteriormente escavados por água", acrescentou Voigt.
Pensa-se que o interior de Marte é muito diferente do da Terra, e uma reconstrução detalhada das suas características geológicas permite aos cientistas vislumbrar os processos que o moldaram no passado. A relação entre os vulcões e a estrutura da crosta marciana é fundamental para compreender as condições paleoambientais do planeta, disse Hamilton. Para além da água contida no magma ser atirada para a atmosfera e depois congelar à superfície, uma erupção vulcânica pode permitir uma libertação catastrófica de água subterrânea.
No passado, "quando havia uma fenda na crosta marciana, a água podia fluir até à superfície", disse Hamilton. "Devido à baixa pressão atmosférica, é provável que essa água literalmente se evaporasse. Mas se houvesse água suficiente a sair durante esse período, podia ocorrer uma enorme inundação que atravessava a paisagem e que esculpia estas enormes características que vemos hoje".
Compreender como a água se deslocou em Marte no passado e onde se encontra atualmente é como encontrar o "Santo Graal", dizem os autores. Uma vez que as regiões equatoriais, onde se situa Elysium Planitia, são muito mais fáceis de aterrar do que as latitudes mais elevadas do planeta, a presença de água e a compreensão dos mecanismos da sua libertação informam as futuras missões humanas, que dependerão criticamente desse recurso.
"Elysium Planitia é o local perfeito para tentar compreender a ligação entre o que vemos à superfície e a dinâmica interior que se manifestou através de erupções vulcânicas", disse Voigt. "Prestei muita atenção aos pormenores das superfícies de lava para tentar desvendar os diferentes eventos de erupção e reconstruir toda a história destas entidades geológicas."
A equipa planeia continuar a tirar partido de grandes e complexos conjuntos de dados obtidos com diferentes métodos de imagem a fim de criar uma visão tridimensional altamente detalhada da superfície marciana e do que está por baixo, em combinação com uma sequência temporal de eventos de outras regiões vulcanicamente ativas.
Voigt comparou as superfícies dos fluxos de lava a "livros abertos que fornecem uma grande quantidade de informação sobre a sua origem, se os soubermos 'ler'".
"Estas áreas que costumavam ser consideradas inexpressivas e aborrecidas, como Elysium Planitia, contêm muitos segredos que querem ser 'lidos'", afirmou.
Fonte: Astronomia OnLine
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