Um alinhamento cósmico e um pouco de "ginástica" por naves espaciais proporcionaram uma medição inovadora que está a ajudar a resolver um mistério cósmico com 65 anos de existência: porque é que a atmosfera do Sol é tão quente?
A atmosfera exterior do Sol, conhecida como coroa, pode ser vista a estender-se no espaço nesta imagem do instrumento Metis da Solar Orbiter. O Metis é um dispositivo multi-comprimento de onda, que funciona nos comprimentos de onda visível e ultravioleta. É um coronógrafo, o que significa que bloqueia a luz solar brilhante da superfície solar, deixando visível a luz mais ténue que se espalha pelas partículas da coroa.
A atmosfera do Sol é chamada de coroa. É constituída por um gás eletricamente carregado conhecido como plasma e tem uma temperatura de cerca de um milhão de graus Celsius. A sua temperatura é um mistério persistente porque a superfície do Sol tem apenas cerca de 6000º C. A coroa deveria ser mais fria do que a superfície porque a energia do Sol provém do forno nuclear no seu núcleo e as coisas arrefecem naturalmente quanto mais se afastam de uma fonte de calor. No entanto, a coroa é mais de 150 vezes mais quente do que a superfície.
Deve haver outro método de transferência de energia para o plasma, mas qual?
Há muito que se suspeita que a turbulência na atmosfera solar pode resultar num aquecimento significativo do plasma na coroa. Mas quando se trata de investigar este fenómeno, os físicos solares deparam-se com um problema prático: é impossível recolher todos os dados de que necessitam com apenas uma nave espacial.
Há duas formas de investigar o Sol: deteção remota e medições in situ. Na deteção remota, a nave espacial é posicionada a uma certa distância e utiliza câmaras para observar o Sol e a sua atmosfera em diferentes comprimentos de onda. Para as medições in situ, a nave espacial voa pela região que pretende investigar e efetua medições das partículas e dos campos magnéticos nessa parte do espaço.
Ambas as abordagens têm as suas vantagens. A deteção remota mostra os resultados em grande escala, mas não os pormenores dos processos que ocorrem no plasma. Entretanto, as medições in situ fornecem informações altamente específicas sobre os processos em pequena escala no plasma, mas não mostram como estes afetam a grande escala.
Para obter a imagem completa, são necessárias duas naves espaciais. É exatamente isso que os físicos solares têm atualmente, sob a forma da nave espacial Solar Orbiter, operada pela ESA, e da Parker Solar Probe da NASA. A Solar Orbiter foi concebida para se aproximar o mais possível do Sol e ainda efetuar operações de deteção remota, juntamente com medições in situ. A Parker Solar Probe renuncia em grande parte à deteção remota do próprio Sol para se aproximar ainda mais para efetuar as suas medições in situ.
Mas para tirar o máximo partido das suas abordagens complementares, a Parker Solar Probe teria de estar dentro do campo de visão de um dos instrumentos da Solar Orbiter. Desta forma, a Solar Orbiter poderia registar as consequências em grande escala do que a Parker Solar Probe estava a medir in situ.
Daniele Telloni, investigador do INAF (Istituto Nazionale di Astrofisica) no Observatório Astrofísico de Turim, faz parte da equipa responsável pelo instrumento Metis da Solar Orbiter. O Metis é um coronógrafo que bloqueia a luz da superfície do Sol e tira fotografias da coroa solar. É o instrumento perfeito para utilizar nas medições em grande escala e, por isso, Daniele começou a procurar alturas em que a Parker Solar Probe estaria alinhada.
Infográfico da "medição bidirecional" efetuada conjuntamente pela Solar Orbiter e pela Parker Solar Probe. Crédito: ESA/ATG, ESA e NASA/Solar Orbiter/Equipa Metis e D. Telloni et al. 2023
Descobriu que, a 1 de junho de 2022, as duas naves estariam na configuração orbital correta - quase. Essencialmente, a Solar Orbiter estaria a olhar para o Sol e a Parker Solar Probe estaria mesmo ao lado, tentadoramente perto, mas fora do campo de visão do instrumento Metis.
Ao analisar o problema, Daniele apercebeu-se de que bastava fazer um pouco de ginástica com a Solar Orbiter para que a Parker Solar Probe ficasse visível: uma rotação de 45 graus e apontando-a ligeiramente para longe do Sol.
Mas quando todas as manobras de uma missão espacial são cuidadosamente planeadas com antecedência, e as próprias naves espaciais são concebidas para apontar apenas em direções muito específicas, especialmente quando enfrentam o temível calor do Sol, não era claro que a equipa de operações da nave espacial autorizasse tal desvio. No entanto, uma vez que todos estavam cientes do potencial retorno científico, a decisão foi um claro "sim".
A Parker Solar Probe entrou no campo de visão e, em conjunto, as naves espaciais produziram as primeiras medições simultâneas da configuração em grande escala da coroa solar e das propriedades microfísicas do plasma.
"Este trabalho é o resultado das contribuições de muitas, muitas pessoas", diz Daniele, que liderou a análise dos conjuntos de dados. Trabalhando em conjunto, conseguiram fazer a primeira estimativa combinada, observacional e in situ, da taxa de aquecimento coronal.
"A capacidade de utilizar tanto a Solar Orbiter como a Parker Solar Probe abriu uma dimensão inteiramente nova nesta investigação", afirma Gary Zank, da Universidade do Alabama em Huntsville, EUA, coautor do artigo resultante.
Impressão de artista das sondas solares da ESA e da NASA. Não estão à escala e não ilustra uma configuração realista das duas missões. Crédito: Solar Orbiter - ESA/ATG medialab; Parker Solar Probe - NASA/Johns Hopkins APL
Ao comparar a taxa recentemente medida com as previsões teóricas efetuadas pelos físicos solares ao longo dos anos, Daniele demonstrou que os físicos solares tinham quase de certeza razão na sua identificação da turbulência como uma forma de transferência de energia. A forma específica como a turbulência o faz não é muito diferente do que acontece quando se mexe a chávena de café da manhã. Ao estimular os movimentos aleatórios de um fluido, seja um gás ou um líquido, a energia é transferida para escalas cada vez mais pequenas, o que culmina na transformação da energia em calor.
No caso da coroa solar, o fluido também está magnetizado, pelo que a energia magnética armazenada também está disponível para ser convertida em calor. Esta transferência de energia magnética e de movimento de escalas maiores para escalas mais pequenas é a própria essência da turbulência. Nas escalas mais pequenas, permite que as flutuações interajam finalmente com partículas individuais, principalmente protões, e as aqueçam.
É necessário mais trabalho antes de podermos dizer que o problema do aquecimento solar está resolvido, mas agora, graças ao trabalho de Daniele, os físicos solares têm a sua primeira medição deste processo. Trata-se de uma estreia científica. Este trabalho representa um passo em frente significativo na resolução do problema do aquecimento coronal", afirma Daniel Müller, cientista do projeto.
Fonte: ESA
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