Quando uma bala de aço é disparada a alta velocidade contra um alvo de gelo cuja composição é semelhante à de um cometa, o choque provoca a formação de aminoácidos, os "tijolos de contrução" das proteínas que compõem os organismos vivos. Os resultados desta experiência foram publicados domingo online, num artigo na revista Nature Geoscience.
O que ela mostra é que, quando um cometa colide com um planeta (ou um asteróide com um planeta coberto de gelo), o local do impacto torna-se uma autêntica "fábrica" de moléculas básicas da vida. "Provámos pela primeira vez, de forma experimental, que o impacto de um cometa num planeta vai gerar aminoácidos", disse ao PÚBLICO Zita Martins, astrobióloga portuguesa e primeira autora do artigo, em conversa telefónica desde o Imperial College de Londres, onde trabalha. Diga-se de passagem que existem outras teorias sobre a origem da vida na Terra, mas que esta é por enquanto a única sustentada experimentalmente.
Os precursores orgânicos dos aminoácidos já tinham sido detectados nos cometas, mas tinha de haver um mecanismo energético capaz, a partir dessas moléculas muito simples, de sintetizar os complexos aminoácidos. A experiência agora realizada permitiu mostrar que o impacto de um cometa com a Terra fornece - e forneceu nos primórdios do nosso planeta - energia suficiente para alimentar essa química.
Já existiam simulações em computador dos efeitos de tais impactos, nomeadamente as de Nir Goldman, co-autor dos actuais resultados, do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórna. Mas há alguns anos, conta-nos Zita Martins, Goldman e o outro co-autor principal do trabalho, Mark Price, da Universidade de Kent (Reino Unido), cruzaram-se num congresso e decidiram montar a experiência no laboratório de Price, que possuía o equipamento adequado. "Faltava uma pessoa perita em detectar aminoácidos e o Mark Price convidou-me", acrescenta.
Quando dispararam - com uma pistola especial de gás comprimido, instalada no laboratório da Universidade de Kent - projécteis de aço contra os alvos a velocidades superiores a 25 mil quilómetros por hora, os cientistas constataram que o impacto gerava aminoácidos como a glicina e a alanina, dois dos 20 aminoácidos do código genético.
Sabe-se que há entre 3,8 e 4,6 mil milhões de anos, a Terra foi bombardeada por cometas e meteoritos. Por isso, diz Zita Martins, os novos resultados mostram o papel fundamental que os cometas podem ter tido na origem da vida. E também é sabido que Encelado e Europa, luas de Saturno e Júpiter respectivamente, estão cobertas de gelo - o que, segundo a cientista, implica igualmente que a vida poderá ter surgido, nesses satélites naturais, sob o efeito do choque com asteróides rochosos. "Os nossos resultados aumentam substancialmente a probabilidade de a vida ter lá surgido", frisa. E de futuras missões espaciais para essas luas virem a detectar vida.
Zita Martins gosta de salientar que, ao passo que habitualmente os impactos de cometas estão associados à destruição da vida - como no caso da extinção dos dinossauros -, os novos resultados mostram que também contribuíram para a síntese dos blocos fundamentais da vida. Todavia, dos aminoácidos à vida "ainda faltam muitas peças para conseguirmos ver o puzzle completo", faz notar a cientista. Como próximo passo, a equipa tenciona tentar ver se é possível formar moléculas mais complexas, tais como proteínas, nos impactos - bem como os componentes do ADN, a molécula que contém o património genético dos seres vivos.
Para já, os cientistas querem estudar a formação de proteínas através do mesmo mecanismo, realizando, numa primeira fase, simulações para ver se ela é possível em teoria. Numa segunda fase, tal como agora, poderão vir a confirmar a realidade do processo através de experiências de balística. Mas isso exige tempo: "Para termos a certeza de que a formação de proteínas é devida ao impacto [e não à presença de proteínas nas amostras], temos de ter a certeza de que não há contaminação das nossas amostras de gelo. E também temos de preparar os gelos com as composições exactas." Zita Martins remete os resultados deste trabalho para daqui a mais "uns quantos anos".
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