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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"Três anéis que a todos retenham": história cósmica pode explicar as propriedades de Mercúrio, Vénus, da Terra e de Marte

 


 Esta imagem, obtida pelo o Observatório ALMA em 2014, foi a primeira a revelar uma estrutura em forma de anel num disco protoplanetário - neste caso, o disco em torno da jovem estrela HL Tauri. O disco visível tem um raio de pouco mais de 100 unidades astronómicas, ou seja, mais de 100 vezes a distância média Terra-Sol. Para comparação: No nosso Sistema Solar, a distância máxima de Plutão ao Sol é de cerca de 50 unidades astronómicas. A investigação aqui descrita mostra o papel fundamental que estruturas semelhantes a anéis como esta provavelmente terão desempenhado na génese do nosso Sistema Solar. Crédito: ALMA (ESO/NAOJ/NRAO)

Os astrónomos conseguiram ligar as propriedades dos planetas interiores do nosso Sistema Solar com a nossa história cósmica: ao aparecimento de estruturas anulares no disco giratório de gás e poeira em que estes planetas foram formados. Os anéis estão associados a propriedades físicas básicas tais como a transição de uma região exterior onde o gelo se pode formar, para outra onde a água só pode existir como vapor de água. Os astrónomos utilizaram várias simulações para explorar diferentes possibilidades da evolução dos planetas interiores. As regiões internas do nosso Sistema Solar são um resultado raro, mas possível, dessa evolução. Os resultados foram publicados na revista Nature Astronomy. 

O quadro geral da formação planetária tem permanecido inalterado durante décadas. Mas muitas das especificidades ainda permanecem inexplicadas - e a procura de explicações é parte importante da investigação atual. Agora, um grupo de astrónomos liderados por Andre Izidoro, da Universidade Rice, encontrou uma explicação para a razão pela qual os planetas interiores do nosso Sistema Solar têm as propriedades que observamos. 

Um disco giratório e anéis que mudam tudo 

O quadro geral em questão é o seguinte: em torno de uma estrela jovem, forma-se um "disco protoplanetário" de gás e poeira, e dentro desse disco crescem corpos pequenos cada vez maiores, eventualmente alcançando diâmetros de milhares de quilómetros, ou seja: tornam-se planetas. Mas nos últimos anos, graças aos modernos métodos de observação, o quadro moderno da formação planetária foi refinado e alterado em direções muito específicas. 

A mudança mais marcante foi desencadeada por uma imagem literal: a primeira imagem obtida pelo ALMA após a sua construção em 2014. A imagem mostrava o disco protoplanetário em torno da jovem estrela HL Tauri em detalhes sem precedentes, e os detalhes mais espantosos eram uma estrutura aninhada de anéis e divisões claramente visíveis nesse disco. 

À medida que os investigadores envolvidos na simulação de estruturas protoplanetárias tomavam em consideração estas novas observações, tornou-se claro que tais anéis e divisões estão geralmente associados a "choques de pressão", onde a pressão local é um pouco mais baixa do que nas regiões circundantes. Essas alterações localizadas estão tipicamente associadas a alterações na composição do disco, principalmente no tamanho dos grãos de poeira. 

Três transições chave que produzem três anéis 

Uma ilustração de três anéis distintos de formação planetesimal que poderiam ter produzido os planetas e outras características do Sistema Solar, de acordo com um modelo computacional da Universidade Rice. A vaporização de silicatos sólidos, água e monóxido de carbono em "linhas de sublimação" (topo) provocou "choques de pressão" no disco protoplanetário do Sol, aprisionando poeira em três anéis distintos. À medida que o Sol arrefecia, os choques de pressão migravam para o Sol, permitindo a acumulação de poeira aprisionada em planetesimais do tamanho de asteroides. A composição química dos objectos do anel interno (NC) difere da composição dos objectos do anel intermédio e do anel externo (CC). Os planetesimais do anel interno produziram os planetas do Sistema Solar inteior (em baixo), e os planetesimais dos anéis intermédio e externo produziram os planetas do Sistema Solar exterior e a cintura de Kuiper (não mostrada). A cintura de asteróides formou-se (meio superior) a partir de objectos NC contribuídos pelo anel interior (setas vermelhas) e objectos CC a partir do anel do meio (setas brancas). Crédito: Rajdeep Dasgupta

Em particular, existem choques de pressão associados a transições particularmente importantes no disco que podem ser ligadas diretamente à física fundamental. Muito perto da estrela, a temperaturas superiores a 1400 K, os compostos de silicato (pensemos em "grãos de areia") são gasosos – a temperatura é simplesmente demasiado alta para que existam em qualquer outro estado. Claro, isso significa que os planetas não se podem formar numa região tão quente. Abaixo dessa temperatura, os compostos de silicato "sublimam", isto é, quaisquer gases de silicato transitam diretamente para um estado sólido. Este choque de pressão define uma fronteira interna global para a formação de planetas. 

Mais longe, a 170 K (cerca de -100º C), há uma transição entre o vapor de água por um lado e a água gelada por outro, conhecida como a linha de neve da água (a razão pela qual a temperatura é muito mais baixa do que o os 0º C padrão onde a água congela na Terra é a pressão muito mais baixa, em comparação com a atmosfera da Terra). A temperaturas ainda mais baixas, 30 K (cerca de -240º C), é a linha de neve do CO (monóxido de carbono); abaixo dessa temperatura, o monóxido de carbono toma forma sólida. 

Choques de pressão como "emboscadas" de seixos 

O que é que isto significa para a formação dos sistemas planetários? Várias simulações anteriores já tinham mostrado como tais choques de pressão facilitam a formação de planetesimais - os pequenos objetos, entre 10 e 100 quilómetros de diâmetro, que se pensa serem os blocos de construção dos planetas. Afinal de contas, o processo de formação começa muito, muito mais pequeno, nomeadamente com grãos de poeira. Esses grãos de poeira tendem a acumular-se na região de baixa pressão de um choque de pressão, à medida que os grãos de determinado tamanho se deslocam para dentro (ou seja, em direção à estrela) até serem parados pela pressão mais elevada no limite interior do choque. 

À medida que a concentração de grãos no choque de pressão aumenta, e em particular a proporção de material sólido (que tende a agregar-se) em relação ao gás (que tende a separar os grãos) aumenta, torna-se mais fácil para estes grãos formar seixos, e para esses seixos agregarem-se em objetos maiores. Os seixos são o que os astrónomos chamam agregados sólidos com tamanhos entre alguns milímetros e alguns centímetros. 

O papel dos choques de pressão para o Sistema Solar (interior) 

Mas o que ainda estava em aberto era o papel destas subestruturas na forma global dos sistemas planetários, como o nosso próprio Sistema Solar, com a sua distribuição característica de planetas interiores rochosos e terrestres e planetas gasosos exteriores. Esta é a questão que Andre Izidoro (Universidade Rice), Bertram Bitsch do Instituto Max Planck para Astronomia e colegas abordaram. Na sua busca por respostas, combinaram várias simulações cobrindo diferentes aspetos e diferentes fases da formação planetária. 

Especificamente, os astrónomos construíram um modelo de um disco de gás, com três choques de pressão no limite onde os silicatos se tornam gasosos e nas linhas de neve da água e do CO. Em seguida, simularam a forma como os grãos de poeira crescem e se fragmentam no disco de gás, a formação de planetesimais, o crescimento de planetesimais a embriões planetários (de 100 km de diâmetro a 2000 km) perto da localização da nossa Terra (a 1 UA do Sol), o crescimento de embriões planetários a planetas terrestres e a acumulação de planetesimais numa cintura de asteroides recém-formada. 

No nosso próprio Sistema Solar, a cintura de asteroides entre as órbitas de Marte e Júpiter alberga centenas de corpos mais pequenos, que se pensa serem remanescentes ou fragmentos de colisões de planetesimais naquela região que nunca cresceram para formar embriões planetários, quanto mais planetas. 

Variações sobre um tema planetário 

Uma questão interessante para as simulações é esta: se a configuração inicial fosse apenas um pouco diferente, o resultado final seria ainda um pouco semelhante? Compreender este tipo de variações é importante para compreender quais dos ingredientes são a chave para o resultado da simulação. É por isso que Bitsch e colegas analisaram vários cenários diferentes com propriedades variáveis para a composição e para o perfil de temperatura do disco. Em algumas das simulações, apenas obtiveram choques de pressão para os silicatos e para a água gelada, noutras para todas as três. 

Os resultados sugerem uma ligação direta entre o aspeto do nosso Sistema Solar e a estrutura em anel do seu disco protoplanetário. Bitsch, que esteve envolvido no planeamento deste programa de investigação e no desenvolvimento de alguns dos métodos que foram utilizados, diz: "Para mim, foi uma completa surpresa a forma como os nossos modelos foram capazes de captar o desenvolvimento de um sistema planetário como o nosso - até às massas e composições químicas ligeiramente diferentes de Vénus, Terra e Marte." 

Como era de esperar, nesses modelos, os planetesimais nessas simulações formaram-se naturalmente perto dos choques de pressão, como um "engarrafamento cósmico" para seixos à deriva para o interior, que seria então parado pela pressão mais elevada no limite interior do choque de pressão. 

Receita para o nosso Sistema Solar (interior) 

Para as partes interiores dos sistemas simulados, os investigadores identificaram as condições ideais para a formação de algo como o nosso próprio Sistema Solar: se a região logo para fora do choque de pressão mais interior (a dos silicatos) contiver cerca de 2,5 massas terrestres de planetesimais, estes crescem para formar corpos aproximadamente do tamanho de Marte - consistentes com os planetas do Sistema Solar interior. 

Um disco mais massivo, ou uma maior eficácia na formação de planetesimais, conduziria ao invés à formação de "super-Terras", ou seja, planetas rochosos consideravelmente mais massivos. Essas super-Terras estariam em órbita próxima da estrela hospedeira, mesmo muito perto da fronteira do choque de pressão mais interior. A existência dessa fronteira também pode explicar porque não há nenhum planeta mais próximo do Sol do que Mercúrio - o material necessário teria simplesmente evaporado tão perto da estrela. 

As simulações chegam ao ponto de explicar as composições químicas ligeiramente diferentes de por um lado, Marte, e pelo outro, da Terra e de Vénus: nos modelos, a Terra e Vénus recolhem de facto a maior parte do material que irá formar o grosso das regiões mais próximas do Sol do que a atual órbita da Terra (uma unidade astronómica). Os análogos de Marte nas simulações, em contraste, foram construídos maioritariamente a partir de material de regiões um pouco mais afastadas do Sol. 

Como construir uma cintura de asteroides 

Para lá da órbita de Marte, as simulações produziram uma região que começou por ser pouco povoada com, ou em alguns casos, até completamente vazia de planetesimais - o precursor da atual cintura de asteroides do nosso Sistema Solar. No entanto, alguns planetesimais provenientes das zonas dentro ou diretamente para lá das mesmas, mais tarde, entrariam na região da cintura de asteroides e ficariam encurralados. 

À medida que esses planetesimais colidiam, os resultantes pedaços mais pequenos formariam o que hoje observamos como asteroides. As simulações são mesmo capazes explicar as diferentes populações de asteroides: aquilo a que os astrónomos chamam de asteroides do tipo S, corpos que são feitos principalmente de sílica, seriam os remanescentes de objetos errantes originários da região à volta de Marte, enquanto que os asteroides do tipo C, que contêm predominantemente carbono, seriam os remanescentes de objetos errantes da região diretamente para lá da cintura de asteroides. 

Planetas exteriores e a cintura de Kuiper 

Nessa região externa, logo para lá do choque de pressão que assinala o limite interior para a presença de água gelada, as simulações mostram o início da formação de planetas gigantes - os planetesimais perto desse limite têm tipicamente uma massa total entre 40 e 100 vezes a massa da Terra, consistente com as estimativas da massa total dos núcleos dos planetas gigantes no nosso Sistema Solar: Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. 

Nessa situação, os planetesimais mais massivos reuniriam rapidamente mais massa. As presentes simulações não deram seguimento à evolução posterior (já bem estudada) desses planetas gigantes, que envolve um grupo inicialmente bastante restrito, do qual Úrano e Neptuno mais tarde migrariam para fora, até às suas posições atuais. 

Por último, mas não menos importante, as simulações podem explicar a classe final de objetos e as suas propriedades: os chamados objetos da cintura de Kuiper, que se formaram fora do choque de pressão mais distante da estrela, que marca o limite interior da existência de gelo de monóxido de carbono. Até pode explicar as ligeiras diferenças entre os objetos conhecidos da cintura de Kuiper: mais uma vez, explicar as diferenças entre planetesimais que se formaram originalmente fora do choque de pressão da linha de neve do CO e que aí permaneceram, e os planetesimais que se desviaram para a cintura de Kuiper a partir da região interior adjacente dos planetas gigantes. 

Dois resultados básicos e o nosso Sistema Solar raro 

No global, a diversidade das simulações levou a dois resultados básicos: ou um choque de pressão na linha de neve da água se formou muito cedo; nesse caso, as regiões interiores e exteriores do sistema planetário seguiram os seus caminhos separados bastante cedo dentro dos primeiros cem mil anos. Isto levou à formação de planetas terrestres de baixa massa nas partes internas do sistema, à semelhança do que aconteceu no nosso próprio Sistema Solar.

 Alternativamente, se o choque de pressão da água gelada se formar mais tarde ou não for tão pronunciada, mais massa pode vaguear para a região interna, levando em vez disso à formação de super-Terras ou mini-Neptunos nos sistemas planetários interiores. As evidências das observações desses sistemas exoplanetários que os astrónomos encontraram até agora mostram que este caso é de longe o mais provável - e o nosso próprio Sistema Solar um resultado comparativamente raro da formação planetária. 

Perspetivas 

Nesta investigação, o foco dos astrónomos foi o Sistema Solar interior e os planetas terrestres. No futuro, querem realizar simulações que incluam detalhes das regiões externas, com Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. O objetivo final é chegar a uma explicação completa das propriedades do nosso e de outros sistemas solares. 

Para o Sistema Solar interior, pelo menos, sabemos agora que as principais propriedades da Terra e do seu vizinho planetário mais próximo podem ser rastreadas a alguma física básica: a fronteira entre a água gelada e o vapor de água e o seu choque de pressão associado no disco giratório de gás e poeira que rodeava o jovem Sol. 

Fonte: Astronomia OnLine

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